Resolvi então sair um pouco de casa para respirar, assistir o dia mais de perto, deixar as horas correr a fio sentindo aquele vento soprando em meu pescoço. Deitada no banco da praça que ficava a alguns metros da minha casa, senti passos que vinham em minha direção. Era ela, eu sabia que era ela. Aquele cheiro incomparável de seu perfume preferido, "Myriad", me vinha como o cheiro mais delicado que eu sentira por toda minha vida. E eu sei que jamais o confundiria.
- Oi Duda! - Disse ela com o sorriso mais encantador do mundo.
- Oi, Mih! - Respondi retribuindo o sorriso.
- Parece cansada... Como está sendo encarar a faculdade logo de cara com apenas 17 anos?
- Estou mais cansada do que aparento está, pode ter certeza... Ah! Sei que é um cansaço que vai valer a pena e ter começado cedo me renderá tempo de organizar minha vida antes dos 24 anos. - Disse rindo timidamente.
- Administração parece ser um ótimo negócio - Retrucou ela rindo do meu riso bobo.
- E é...
Ficamos ali jogando conversa fora, e quando me dei conta já estava quase na hora do almoço. O incrível era que ao lado dela o tempo parecia não passar e passava rápido ao mesmo tempo.
- Não quer ir almoçar lá em casa, Mih? - Disse com o rosto parecendo uma pimenta, sei disso.
- Não vai dar, Duda. Preciso ir pra casa hoje, almoço em família... Sabe como é né?! Mas mesmo assim, manda um beijo pra tia Martha, tô morrendo de saudade dela, e avisa que amanhã apareço pra dormir lá. - Disse ela ao sair andando apressada ao olhar o relógio.
Eu juro que não entendi a piscadinha que ela deu ao final do seu breve recado. Mas mesmo assim fiquei feliz em saber que ela dormiria lá em casa amanhã.
Martha é minha mãe, e todos os meus amigos têm o costume de chamá-la de "tia". Meu pai morreu muito jovem, eu tinha apenas dois anos quando o acidente tirou sua vida, desde então, nunca mais vi mamãe se relacionar com ninguém. Quando a pergunto quando vai seguir em frente, ela me responde que seu estoque de amor foi gasto com meu pai, e ao se relacionar com alguém sem amor, é melhor ficar sozinha. E eu concordo.
Mih é simplesmente a pessoa mais incrível que já conheci, ela me apoia em tudo que quero fazer, conheço ela há seis anos, e me apaixonei perdidamente por seu sorriso quando a vi na sala de aula, sentada ao meu lado me pedindo uma borracha emprestada, e aquele sorriso... Ah aquele sorriso... Acompanhado de um "obrigada!", foi simplesmente o gatilho que fez disparar um arsenal de balas dos sentimentos mais puros que haviam em mim. E desde então, não paro de sonhar com a menina que é dois anos mais velha que eu e possui o incrível talento de fazer com que todos a sua volta se apaixonem por ela.
Após almoçar, me deitei um pouco e acabei cochilando. Quando me dei conta e olhei no celular, já eram 18:30h, tinha dormido demais e como estávamos no horário de verão, ainda não aparentava ser noite, e como eu já previa: Estava chovendo.
Reparei também no celular que haviam algumas mensagens no "Whatsapp", li e respondi todas, e quando ia desligar o celular, chegou uma mensagem da Mih. Como de costume, meu coração bateu na garganta.
A mensagem era breve: Abre a porta?
Juro que nesse momento se eu fosse cardíaca, teria infartado.
Então abri a porta do quarto e fui surpreendida ao ver a Mih, chorando, não tive outra reação senão abraçá-la com toda força que eu tinha. Aninhei sua cabeça em meu ombro e deixei que ela molhasse minha camiseta da Hollister com suas lágrimas.
Ficamos assim mais ou menos uns 10 minutos. Até que ela resolveu me olhar nos olhos e dizer: Que abraço de urso, sua bruta.
Eu sorri.
Ela sorriu.
Então sentamos na minha cama pouco bagunçada, mentira, muito bagunçada, e ainda com os olhos marejados de lágrimas ela sorriu.
- Você parece um anjo, Duda. - Disse ela ainda sorrindo.
- Todo mundo diz isso, Mih. Vou pro céu, mesmo sendo lésbica, tô feliz em saber disso. - Disse em tom de sarcasmo.
- HAHA, sua idiota, lógico que você vai pro céu mesmo sendo lésbica, tem o melhor coração do mundo.
- Tô sabendo... Mas então, porque tava chorando? Quebrou a unha? - Disse com tom de ironia.
Ela me deu um tapa leve no braço e balbuciou: Acho que gosto de alguém.
Juro que não sei qual foi minha expressão nesse momento, mas a fez ficar com cara de preocupada.
- Quem é o felizardo? - Perguntei.
- João. - Ela respondeu meio sem jeito.
Não sei em exato o número de vezes que meu estômago ensaiou cambalhotas, e nem em quantos cacos meu coração se partiu naquele momento. João era meu primo, fazia dois anos que não conversava com ele por conta do fato dele não respeitar minha condição sexual, e no fundo eu sabia que a Mih gostava dele, só não tava muito afim de pensar nisso, ainda.
- Babaca! - Disso tentando sorrir.
Então ao me ouvir dizer aquilo, ela gargalhou, e isso me fez ficar um pouco melhor. Na verdade não importava muito se eu ia ficar ou não feliz no momento, a questão era ver ela feliz, e isso me bastava. Eu seria feliz também, depois.
- Posso ser babaca, mas você é mais porque gosta de mim. - Disse ela tentando me fazer sorrir.
- É... - Disse com a expressão mais séria que consegui e tentei dar um "mini sorriso" para disfarçar o quanto ouvir aquilo me deixou triste.
- Então... Seu primo é um amor de pessoa e eu gosto muito dele, o problema é que eu gosto de você também, muito. E sabia que isso iria te deixar mal, mas eu não conseguia mais não te contar isso, tava entalado já.
- Tudo bem, Mih. Se você tá feliz, mesmo com um cara feito o babaca do João, eu tô feliz também.
Depois que ela se despediu e foi embora, meu estômago ainda brincava de saltar dentro de mim, então resolvi ler um pouco do livro "Se eu pudesse viver minha vida novamente" e escutar "All of me".
O tempo passou, já fazia quase cinco anos que não via a Mih, nem tive notícias dela, além da que ela tinha se casado uns meses depois de ter me contado aquilo sobre o João, e os dois tinham se mudado pra São Paulo, como eu continuava morando em Niterói, não cacei fundamento, pois mamãe sempre me dizia que não ver, é não sentir.
Já tinha me formado, estava trabalhando numa empresa em ascensão, tudo estava indo as mil maravilhas, namorei a Fabi por três anos, e terminamos porque ela teve que ir morar nos E.U.A, conseguiu um ótimo estágio e eu fiquei feliz por ela. Antes de sermos namoradas, éramos grandes amigas. E no fundo eu sabia que meu coração jamais bateria por alguém como bateu pela Mih um dia. E aquele vazio no meu peito, não conseguiria ser preenchido, só amenizado.
Numa Sexta-feira, como de costume, cheguei no trabalho às 08h em ponto, e uma colega me atualizou das notícias do dia anterior, e avisou que o "chefão" queria falar comigo. Então caminhei até a sala do "Todo Poderoso" Marcos, e ele me pediu que fizesse uma viagem extra no fim de semana, e o destino era uma filial em São Paulo. Sem poder recusar, pedi maiores informações e saí mais cedo do trabalho para organizar tudo antes de pegar estrada.
Carro revisado, tudo organizado nas malas, fui para São Paulo, cheguei lá bem tarde, meu medo de dirigir faz isso comigo. Mas o importante foi que cheguei bem ao Hotel e aquela tarde de Sábado em especial parecia super tranquila.
Tomei um banho relaxante, comecei a escutar músicas enquanto um leve sono me embalava e acabei mesmo dormindo, afinal de contas, eu estava precisando.
Quando acordei já era Domingo, faltavam mais ou menos umas 2h para reunião, então comecei a me arrumar, organizar as pastas com os documentos em questão, revisar umas contas e calcular outras.
Cheguei a filial faltando cinco minutos para reunião começar. Então me sentei à mesa, me serviram uma xícara de café que foi a melhor coisa do mundo no momento.
E então o inesperado aconteceu...
Quando terminei de tomar o café, a senhorita que tinha me servido o mesmo, o retirou da mesa, e quando olhei, novamente, ao redor, meu coração disparou e as pernas bambearam. Sim, era ela, o cheiro de Myriad invadia o espaço, tomando conta de tudo por ali.
Mais assustada que eu, ela deu um sorriso com um dos cantos da boca, e eu fingi um em retribuição.
Tentei avidamente me concentrar na reunião, que graças a Deus ocorreu como planejado.
Quando me dirigia a saída da filial, Mih me segurou pelo braço e sem que eu pensasse muito em me virar, ela me deu um abraço.
- Abraço de urso, sua bruta. - Eu disse após alguns minutos.
Ela sorriu.
Eu Sorri.
A convidei para almoçar, pela primeira vez ela aceitou, e enquanto almoçávamos ela foi me contando que fazia quatro anos que ela já não era mais casada com João, que durou muito pouco tempo e então ela fez uns cursinhos e organizou sua vida e agora era secretária de um dos sócios da filial em São Paulo.
Eu sorri bobo ao saber disso e perguntei o porque deles não terem dado certo. E então o momento mais surpreendente de toda minha vida, aconteceu.
- Não demos certo pelo simples fato de eu gostar dele e amar você. Tentei esconder isso uma vida toda e não consegui, o problema era eu me aceitar, eu não conseguia me ver de outro jeito, sempre fui criada em família tradicional, a droga toda foi te ver sorrindo naquela sala de aula ao me ver sorrir dizendo "Obrigada!" ao devolver a borracha que tinha me emprestado, que puta sorriso que você tem, e esse jeito palhaço e idiota de querer me ver feliz antes de ser feliz, como não apaixonar? Quando fui te procurar pra te contar tudo isso, você já estava namorando, então resolvi que seria sacanagem atrapalhar, porque eu tentei ser feliz a minha maneira e você também deveria ter sua chance. Então comecei a fazer minha parte, me assumi para minha família, terminei com João contando o motivo real, e no fundo sei que ele sempre soube, eu falava de você 25horas por dia. E foi melhor assim. Por isso não te procurei mais, não quis mais te responder, porque eu precisava te deixar tentar ser feliz sem mim, e deixei, mas sempre soube que Deus escreve certo por linhas tortas, e aqui estamos... solteiras, eu aceitando seu famoso pedido de almoço e você com cara de besta olhando pra mim.
Nesse exato momento eu não tive nenhuma reação a não ser chorar de felicidade. Meu amor, minha menina, tudo que eu sempre quis, acabara de se declarar pra mim como eu sempre sonhei. Então depois de alguns minutos sem falar nada, paguei a conta, peguei ela pela mão, nos dirigimos para fora do restaurante e então fiz o que sempre quis: Me ajoelhei, a pedi em namoro, ela aceitou. E enfim dei o beijo mais esperado de toda minha vida. Foi o beijo mais incrível do mundo.
Faz dois anos que estamos juntas, pedi transferência para filial em São Paulo e demos entrada no nosso apartamento, tudo vai muito bem.
Eu não sei exatamente quantas vezes uma pessoa se magoa com a outra que ama, mas aprendi que o que tem de acontecer, simplesmente acontece. Mas o tempo que leva pra acontecer, não depende de nós. E no fundo, só nos resta fazer nossa parte e acreditar que aquilo que Deus faz, é sempre o melhor.
- Sanny Rodrigues Lessa. - Conto: Sou (d)ela.
Nenhum comentário:
Postar um comentário